sábado, 23 de novembro de 2013

O desenho no meu quarto

       "Um quarto de mim é sorte. Talvez pouco mais. O resto sou eu deitado no meu quarto. Eu querer ser resto é normal se ser todo for ser todo o mundo. Não sou. Não quero ser nem ter. É sorte. Ainda assim, estou ali, deitado com os três quartos de mim resplandecentemente pensantes e ociosos. Não devo nada à sorte, ela quem me deve as vezes que ela me falta. Geralmente é a maior parte delas."
        Abriu os olhos, ouviu a chuva e deixou de sonhar o dia em que o mundo não seria apenas sorte. Muitos diziam que aquilo não era sorte, era uma complicada variação de gestos e consequências que ser humano nenhum saberia deduzir quando, onde ou porque. Embora filósofos e cientistas tentassem incansavelmente, poderiam apenas supor. De uma forma ou de outra, para ele, aquilo era e sempre seria sorte.  Enquanto ela o guiava até a porta, recebeu o aviso de que talvez aquele dia, ela não estaria com ele. Aquilo não lhe era estranho, mas ainda assim seus três quartos de ser ficaram acuados por aquela mensagem. Se dele fosse tirada a única verdade que via em toda aquela insanidade mundana, a mentira não bastaria. Seria hora de ser parte daquela chuva que gelada castigava os infortunados como ele. O quarto o alentava. Ali poderia ser três quartos de si livremente e a vida só cobraria lá fora. Agora a sorte fazia sentir sua falta e a falta da sorte custava a melhor parte de si em destruição. Autodestruição ou não, ele nunca saberia.
         "A inconveniência da sorte excede os limites dos meus pensamentos. Onde ela quer me levar eu não sou. Esse mundo imundo já não cabe de tantos "eus". Querer mais nós em meio a isso parece pecado, loucura…"
        Quando seus pensamentos já haviam se perdido ao longe na falta de sorte e a chuva caía com ainda mais intensidade sobre a roseira do vizinho, aquela verdade o chamou. Gritava por socorro. Ele seria então capaz de socorrer algo tão variável e disforme. Algo que poderia ser tão mais confortável que seu quarto como também poderia ser isso uma mentira. Já se enganara outra vez. Tudo aquilo o crucificava. Parecia prestes a se sacrificar por algo que poderia transformá-lo em nada. Talvez único ser desperto em um raio de universos poderia se submeter àquela escuridão catastrófica para simplesmente não saber, se perder a procura de uma coisa que talvez nunca tenha estado ali. Estando isso muito além de seus três quartos de pensamento, bem próximo à sorte que lhe faltava, nada poderia fazer a não ser esperar que chegasse o dia em que ela viesse a ele, porém, talvez não devesse.
         "E se a loucura estiver a minha espreita em qualquer lugar do não ser, seria digno. Mas o mundo não suportaria não me prender a si. A sorte que me falha demonstra. Mas ainda assim, não almejo ser desses seres sortudos e rotineiros que morrem terrivelmente anônimos. A verdade não morre e não está no mundo ou na sorte, mas porque isso me atrai? Porque eu quero?"
       Pensou incontáveis vezes em abandonar seus quartos e quarto e sair a procura dessa tal verdade, quando se viu ao lado dela. Ela não era algo bom. Nem mesmo era algo ruim. Era algo sobre o que ele não tinha controle, mas que poderia fazer parte dela. Ela porém, nem mesmo era uma verdade. Não que fosse uma mentira, mas era inconsistente. Nessa hora, tudo fez sentido. A sorte não havia lhe faltado, ela o atraíra para dentro dela e o traíra sem seu quarto ou três quartos. Agora ele era preso a nada, quando agora nada, é o mundo. 

Por Carlos Fernando Rodrigues S.S.D.